sexta-feira, 28 de setembro de 2012


A POESIA NO CALOR DA HORA: 
A DIALÉTICA DO COMPARTILHAMENTO DE CÉLIA PEDROSA 



No primeiro ensaio de seu mais recente livro, Célia Pedrosa discorda secamente de Vagner Camilo, que associa determinado título de Drummond a uma manobra do poeta para colocar-se em oposição a seus contemporâneos. O desacordo com o crítico paulista não deixa de fazer parte do debate sobre a herança de Antonio Candido, mas serve à autora sobretudo para afirmar uma visão do poeta como homem do seu tempo, preocupado em resgatar a profundidade temporal e poética da linguagem. A poesia, responsável pelo destino de um imaginário compartilhado, deveria ser entendida de modo “positivo”.

Creio que a proposta poderia ser estendida ao trabalho crítico de Célia Pedrosa, que vem buscando, há mais de uma década, identificar a perspectiva que a poesia tem sobre o mundo, seus recortes significativos, as estratégias que mobiliza na percepção dos movimentos tectônicos daquilo que chamamos contemporâneo.

Para a autora, a poesia se coloca em “relação de diálogo e simultânea resistência” com o contemporâneo, sem arrogar-se o direito do juízo sentencioso nem, tampouco, contentar-se com a postura de réu ou de cavalo retardatário no páreo da modernidade. Menos interessada pelo julgamento sociológico ou estatístico do “impacto” cultural da poesia, a crítica prefere descrever o modo como esta se dispõe na perspectiva da produção do “comum”, do “sentido do ser comum e estar em comum”.

De Baudelaire a poetas brasileiros nascidos na década de 1970, Ensaios sobre poesia e contemporaneidade requisita um quadro histórico amplo, enraizando seus interesses mais decisivamente na produção das últimas décadas. Ao reler os pressupostos do “cânone” modernista brasileiro (Drummond, Mario de Andrade), Pedrosa coloca em xeque oposições e inconsistências que não passariam de subprodutos da leitura rotineira desses autores.

A situação curiosa, explorada por um dos ensaios, é eloquente sobre o deslocamento da discussão: durante as discussões de um encontro de escritores, o politizado Mario de Andrade permanece calado na plateia, enquanto escreve os versos do longo poema “A meditação sobre o Tietê”. A força contraditória do refluxo é que carrega o sentido poético da história. Mas reler Drummond e Mario de Andrade permite, para Pedrosa, mais decisivamente, identificar o sentido das continuidades, dos desdobramentos e das heranças que constituem a “paisagem” contemporânea, tanto brasileira quanto portuguesa.

As profanações da viagem, da memória, do olhar, da identidade, uma certa tendência da poesia em caminhar para dentro da perda compõem a matéria do livro: elas estão na “antiviagem” mariodeandradiana, que se desdobra até Ítalo Moriconi; estão nos atritos de Leminski com a ideia de vanguarda; na “desnaturalização da visualidade dominante na vida cultural contemporânea”, perceptível em Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto e Fabio Weintraub; na subversão do olhar em prol da linguagem e da visceralidade, em Armando Freitas Filho; na perturbação da paisagem, na poesia deste resenhista; na recusa irônica da “separação sacralizante”, em Adília Lopes, ou ainda em Daniel Jonas e Marcello Sorrentino. As desnaturalizações empreendidas pelo poético perturbam e colocam em crise a autocomplascência, a apatia e o cinismo “pós-modernos”: eis como a poesia ajuda a produzir “contemporaneidade”.

Não há dúvidas de que Célia Pedrosa é uma leitora informada e atenta, que possui a habilidade pouco comum de organizar em contextos temáticos e críticos pertinentes a leitura de obras recebidas no calor da hora. O exercício é, não apenas difícil, mas inusual, tendo em vista a polarização habitual entre as metodologias programáticas, “descritivas”, e a compulsão da militância. Se Adília Lopes (cujo destaque, dentro do livro, só é comparával a Drummond) reivindica uma irônica “caridade”, na chave do “satanismo ético” de Baudelaire, talvez devêssemos também enxergar uma caridade crítica em Célia Pedrosa, que consistiria na disposição em “fazer a ponte”, em construir relações, em produzir “compartilhamento”. Isso se manifesta, não apenas na leitura de poesia contemporânea como lugar legítimo do desdobramento de um passado algo mitificado, mas também na tentativa de fazer ombrear, ainda que a propósito de aspectos muito específicos, projetos intelectuais dificilmente harmonizáveis como os de Antonio Candido e Silviano Santiago, Raul Antelo e Roberto Schwarz, Paul de Man e Alfonso Berardinelli.

A tentativa de superar confrontos se manifesta na busca de repensar os laços com a tradição, bem como os laços entre a poesia brasileira e portuguesa. O lamento pela breve duração da “prática bifronte” da revista Inimigo Rumor (publicada simultaneamente no Brasil e em Portugal) é significativo desse desejo de abandonar oposições polarizantes e instaurar um espaço dialógico. O risco que ronda o procedimento, como não podia deixar de ser, é exatamente o de amenizar os embates, os atritos, as denegações, aquilo que permanece recalcado sob os anseios da comunhão na diversidade – anseios que não deixam de fazer parte, de modo muito imediato, do sentido do nosso contemporâneo.


[Resenha feita para o jornal O Globo do livro Ensaios sobre poesia e contemporaneidade, de Célia Pedrosa (Rio de Janeiro, Editora da UFF, 2011).]

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