terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A VIDA PASSADA A LIMPO

  
Não há razão para imaginar que as biografias de Derrida que vêm sendo publicadas desde sua morte (há pelo menos duas, nos EUA), em 2004, não se prestem aos mesmos mal-entendidos das leituras de sua obra, reféns de adesões ou de resistências meticulosamente calculadas. O trabalho de Benoît Peeters, entretanto, publicado recentemente pela Flammarion, merece o voto de confiança e o empenho do leitor que se disponha a cruzar 700 páginas de texto fartamente documentado. Trata-se, certamente, do mais sério e mais importante trabalho de pesquisa biográfica sobre o filósofo realizado até o momento.

Como articular a lógica de um pensamento alimentado pelas figurações da própria vida com a história de um homem que se dispôs a negociar as dificuldades da “paixão” no âmbito público? Peeters – que já escreveu biografias de Paul Valéry e de Hergé – faz uma opção clara, logo na apresentação: se, por um lado, subestima os potenciais impasses dessa tarefa (invocando o risco de “mimetismo” derridiano), por outro, assume plenamente as exigências da “lei do gênero” biográfico: a abrangência do trabalho com as fontes e o exercício de uma certa isenção.

Não há como negar o enorme volume de trabalho envolvido na reconstituição criteriosa da trajetória pessoal e intelectual de Derrida, com o auxílio não apenas dos textos publicados, mas sobretudo de seus arquivos pessoais (em Irvine/EUA e no IMEC/França), nos quais se inclui uma vasta e antiga correspondência. O resultado – organizado cronologicamente, por fases, da vadiagem nos subúrbios de Argel às especulações sobre um prêmio Nobel, finalmente não concedido, em 2004 –, é grandioso e tem a vantagem de poder ser lido de maneira agradável, mesmo por quem conhece pouco da obra de Derrida.

Mas se o livro chega a ser cativante, em muitos momentos, não é apenas pela fluência da escrita. Paralelamente à trajetória de Derrida, Peeters oferece uma fascinante história da vida intelectual francesa a partir do pós-guerra, suas configurações, seus conflitos internos e sua expansão mundial, sob a etiqueta da “french theory”, período em que esta passou a ser alavancada pelo sistema universitário americano, atribuindo uma nova configuração às humanidades.

O biógrafo não cedeu à tentação de colocar no centro de sua narrativa a revelação de segredos (aliás, de polichinelo), como a história de amor extraconjugal com Sylviane Agacinski, ainda que a estratégia de acumulação de detalhes da vida pessoal seja incômoda, em alguns pontos. Preferiu destacar as relações do pensador com o marxismo, com a psicanálise, com a fenomenologia, com a crítica literária, explicadas a partir da convivência com Althusser, Foucault, Sollers, Bourdieu, Lacan, Ricoeur, Genet, Blanchot, Lévinas, Paul de Man, Habermas, entre outros. Menos do que sugerir que relações pessoais determinam tomadas de partido, a narrativa ajuda a entender como afinidades (ou divergências) pessoais resultam de posturas diante do conhecimento e da prática política.

A perspectiva adotada, “interna”, por assim dizer, acompanha a voz de Derrida (sobretudo a das correspondências) e dos entrevistados, chegando a aventurar-se numa espécie de discurso indireto livre, apenas interrompido por aspas e notas tão numerosas que o leitor acaba desistindo de consultar. Mas a cumplicidade não compromete a capacidade de esclarecimento do texto. Ao contrário, o biógrafo se coloca frequentemente em primeiro plano, elucidando o sentido dos fatos, apresentando informações teóricas e contextuais importantes para o leitor não familiarizado. É seu modo de lidar com os diversos rascunhos de vida que se apresentam sob a forma de documentos e de testemunhos, eventualmente conflitantes. Se, ao passar a limpo essas vidas de Derrida, a narrativa ameniza dificuldades, o que garante sua credibilidade é o fato de que, embora demonstre simpatia pelo biografado, Peeters não deixa de dar destaque a interesses, erros de estratégia, eventuais efeitos de narcisismo.

Ao final, para além da fama do teórico exigente e difícil, criador de uma formulação conceitual (a “desconstrução”) que marcou a história do século XX, conhecemos também o Derrida militante pelos direitos humanos, “engajado”, desde os anos 60, com o ensino e com questões pontuais de política local e internacional, instigador de “contra-instituições”, odiado ou invejado pelos contemporâneos, suscetível, mas principalmente generoso, irredutível sobre certas posições, mas também vítima de bloqueios institucionais que acabaram por selar sua ausência dos departamentos de filosofia, por exemplo, bem como da universidade francesa, de modo geral.


Para quem o conheceu (Derrida apenas tardiamente visitou o Brasil, como outros países de “democracia recente”, “na falta de bons interlocutores às vezes, mas mais frequentemente por razões políticas”), a leitura do texto de Peeters confirma diversas qualidades, entre as quais capacidade de escuta e rigor intelectual absolutamente incomuns. Confirma, também, indiretamente, sem prejuízo daquilo que continua por ser lido no pensamento e na prática política de Derrida, que “o segredo é que não há segredo”, não há explicação final para aquilo que continua a nos inquietar.


[Texto publicado originalmente sob o título “Uma vida entre lutas políticas e intelectuais” no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 12/2/2011, p.2-2]

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