sexta-feira, 17 de março de 2017

SOBRE A POESIA QUE VENDE





Há uma ideia já antiga, realista e ao mesmo tempo estratégica, de que “poesia não vende”. Ainda não está muito claro se isso seria uma vantagem ou uma desvantagem para a poesia. Mas o fato é que os livros de poesia costumam ser recusados por livreiros e, consequentemente, olhados com polida antipatia quando apresentados aos editores. Alega-se desinteresse do público. Segundo uma discussão curiosa, especula-se se seriam 300 ou 3.000 os leitores de literatura contemporânea, no Brasil. A estimativa é tão incerta quanto impraticável, uma vez que leitores de poesia não leem poesia apenas em livros nem compram necessariamente os livros que leem. De resto, a internet complicou de uma vez por todas esse tipo de cálculo.  

A ideia do desinteresse em relação à poesia refere-se, portanto, em primeiro plano, não exatamente à leitura, mas à venda de livros (2% do mercado de livros de ficção, em 2012). Ainda aí há complicações. Em 2013, a tese da marginalidade mercadológica tornou-se algo insólita com o best seller de Paulo Leminski, Toda poesia, publicado pela Co. das Letras, livro que chegou aos 100 mil exemplares vendidos em pouco mais de um ano. Poética, de Ana Cristina Cesar, também não fez feio e seguiu-se a ela outra compilação, de Wally Salomão, no setor de “clássicos” contemporâneos ainda não “resgatados” (como disse uma das editoras da casa). A poesia portanto é resgatável, também comercialmente.

Outros editores, inclusive pequenos, vêm mostrando um interesse já consolidado pela poesia, publicando-a “discretamente”, não raro de modo artesanal. A situação, bem diferente do aberto descaso de que sofria o gênero há algumas décadas, merece atenção do ponto de vista crítico e editorial. 

A Co. das Letras tem sua especificidade. Ao lado dos poetas ligados ao pop dos anos 1970, a editora vem publicando também sucessos modernistas já estabelecidos, como Vinícius de Moraes. A compra dos direitos de publicação de Drummond, em 2012, foi um acontecimento importante na agenda comercial do livro. O lançamento, em 2017, das Poesias reunidas de Oswald de Andrade e a previsão de lançamento da poesia completa de Hilda Hilst parecem indicar uma nova estratégia. Nota-se que a tentativa de atribuir glamour comercial à poesia, apoiada no aparato da publicidade, tem sido capaz de mobilizar setores especializados da mídia e a atenção dos festivais.

Com exceções pontuais, a Co. das Letras sempre publicou poesia esparsamente. Com relação à poesia brasileira, a consolidação do catálogo é ainda mais recente e a escolha de autores, relativamente arbitrária. Se a publicação de poesia pode ser vista como uma concessão que se faz a determinados círculos intelectuais, como um verniz de civilidade dentro da lógica de mercado, gerando “sucesso de estima”, não se pode menosprezar a tendência da incorporação ao catálogo de nomes do showbiz, de tudo aquilo que circula bem nas colunas e nas redes sociais. De Gregório Dudivier e Arnaldo Antunes a Fernanda Torres, isso é perceptível não apenas no caso da poesia. Mas a notícia de uma antologia de poesia brasileira contemporânea organizada por Adriana Calcanhoto não deixa de ser bom exemplo dessa estratégia, que visa associar ideia de livro e ideia de produto.

Não acredito que se possa contestar, como formulação de princípio, o trabalho de dar publicidade a um bom livro. Há um risco real, entretanto, em transformar em critério editorial traços característicos da lógica do marketing, ou seja, daquilo que procura adequar-se à previsibilidade do gosto do público (dito “médio”) ou, pior, de um desejo de compra (esfera da sedução de produto). 

Não há receita para saber o que é boa literatura. Nem as políticas editoriais são tão lineares. Mas há um problema quando o projeto de livro limita-se à opção entre gerar o produto novo e reciclar o produto fora de catálogo. Outras variantes precisariam ser consideradas, como os debates em curso sobre problemas contemporâneos, as questões de crítica e história literária, a natureza das discussões sobre a poesia, a situação editorial dos principais livros da poesia brasileira, a relação da edição com o ensino, a presença da poesia internacional na produção literária, o tipo de leitor que queremos constituir. 

A impressão é que a dimensão pública da poesia é minimizada pelos editores. Basta ler as orelhas, as entrevistas, considerar determinadas intervenções na mídia para se perceber uma espécie de afetação pessimista a esse respeito. Quando se transforma em descaso intelectual, apartado do ambiente no qual as obras circulam, acaba por justificar o que se assemelha a um niilismo mercadológico, que exaure determinados espaços para poder reocupá-los, legitimando seus objetos pela mera exposição no espaço público.

Mimetizada pelos próprios autores, em outras circunstâncias, a postura causa consternação. Mas naturalizada como modus operandi da literatura, suas consequências podem ser ainda mais desastrosas. Valeria a pena avaliar se isso nos basta como vida literária. 


[Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, com o título “Descontruindo o mito de que poesia não vende”, no dia 5/3/2017. A versão do jornal é diferente em alguns pontos, a começar pelo título, e não incluía os dois últimos parágrafos, tal como aqui reproduzidos.]